DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DA CÁRIE OCULTA: RELATO DE
CASO CLÍNICO
HIDDEN
CARIES DIAGNOSIS AND TREATMENT: A CLINICAL CASE REPORT
Corbellini
C*, Carvalho AS**, Lima-Arsati YBO***
RESUMO: A
cárie oculta é uma lesão cariosa detectada em radiografias interproximais na
dentina, em que, clinicamente, o esmalte oclusal se apresenta sadio ou
minimamente desmineralizado. O objetivo deste trabalho foi apresentar e
discutir as características da cárie oculta, a partir do relato de um caso
clínico. No dente n°. 46 havia uma lesão de cárie restrita ao sulco
mésio-distal. O exame radiográfico interproximal mostrou evidência de
diminuição da radiopacidade da dentina. Também foi utilizado o Diagnodent (Kavo)
como método auxiliar de diagnóstico. O dente foi restaurado com resina
composta. A ingestão frequente de sacarose e a alta exposição aos fluoretos são
fatores etiológicos, quando associados, de cárie oculta. Para o melhor
diagnóstico da atividade de cárie de qualquer lesão, cavitada ou não, a
associação de métodos é o mais indicado. As lesões de cárie já estabelecidas
devem ser indicadas para o tratamento restaurador. A cárie oculta tem a mesma
indicação. O tamanho reduzido da cavidade tem relação direta com a precocidade
no diagnóstico. Devido à possibilidade de um diagnóstico clínico falso negativo
para cárie em dentes com a superfície oclusal hígida, está indicado o exame
radiográfico interproximal como rotina para todos os pacientes.
PALAVRAS-CHAVE: cárie
dentária. fluoreto. radiografia interproximal.
ABSTRACT: Hidden
caries is a carious lesion detected by bite-wing radiographies in dentine,
where the occlusal enamel surface is sound or slightly demineralized
clinically. The aim of this work was to present and discuss the features of
hidden caries, starting from the report of a clinical case. Lower right first
molar had a lesion restricted to the mesiodistal
furrow. Radiographic examination showed evidence of decrease in dentin radiopacity. Diagnodent (Kavo) was used as auxiliary method of diagnosis. Tooth
received a composite restoration. Association between sucrose and high
exposition to fluoride is etiological factor for hidden caries. For best
diagnosis of caries activity of any lesion, association of methods is the most
suitable measure. Established caries should receive restoring treatment. Hidden
caries have the same indication. The restrict size of the cavity has direct
relationship with early diagnosis. Due to the possibility of a false-negative
caries diagnosis during clinical examination, bite-wing radiograph is indicated
as a routine for all patients.
KEYWORDS: dental
carie. fluoride. bite-wing radiography.
INTRODUÇÃO
A cárie dentária é uma doença infecciosa e
contagiosa. Seu desenvolvimento é determinado pela presença de bactérias e
carboidratos fermentáveis1,
sendo modificada, entre outros fatores, pelos componentes salivares e pela
exposição a fluoretos2.
Estudos em fósseis africanos indicam que a cárie é uma doença relativamente
nova. Acredita-se que esta doença apareceu com prevalência significativa quando
o homem deixou de ser exclusivamente caçador e passou a usar açúcar3.
Não é difícil constatar, com base em
inúmeros estudos, que a prevalência da cárie dentária está diminuindo, porém
ainda não está controlada. A despeito dessa menor prevalência, a superfície
oclusal de molares permanentes ainda é a mais acometida, representando a maior
proporção de experiência de cárie nas idades de 6 a 12 anos4,5.
Apesar dos visíveis avanços tecnológicos da
Odontologia, o diagnóstico das consequências da doença cárie – as lesões
de cárie – na superfície oclusal dos dentes posteriores suscita discussões
acaloradas. Em muitos casos, as lesões de cárie em estágio inicial, quando
presentes nestas regiões, sofrem a mesma intervenção invasiva e operativa
habitual – restaurações. Deve-se isto ao fato de que quando se deparam
com este tipo de lesão de cárie, muitos dentistas sentem-se mais seguros indicando
o tratamento restaurador.
Historicamente, o diagnóstico de lesões
cariosas oclusais tem sido exame visual associado ou não ao uso de sonda e
radiografia. O critério “sonda prendeu” tem sido contra-indicado, nas últimas
décadas, por seu potencial efeito iatrogênico e por não possuir uma validade
adequada6,7.
Diferentes métodos de diagnóstico podem ser associados ao exame visual: exame
radiográfico convencional, transiluminação com fibra ótica, medida de
resistência elétrica8,9
apresentando cada um suas vantagens e desvantagens.
A falta de um método de diagnóstico único e
eficaz para detecção de lesões iniciais afeta o diagnóstico e o tratamento de
lesões cariosas oclusais. Associado a isto, a redução na prevalência da doença
tem provocado um aumento de diagnóstico falso-positivo. Além disso, vários
estudos têm apontado para um padrão diferenciado de manifestação da doença
cárie. Relata-se uma prevalência aproximada de 10% de lesões em dentina sob um
esmalte aparentemente normal (6% em molares superiores e, aproximadamente, 13%
em inferiores)10.
Todas estas mudanças afetam a exatidão diagnóstica11.
A cárie oculta é uma lesão cariosa
detectada em radiografias interproximais na dentina, em que, clinicamente, o
esmalte oclusal se apresenta sadio ou minimamente desmineralizado12.
Os estudos etiológicos apontam como responsáveis pelo aparecimento deste tipo
de lesão a sacarose, a microbiota específica, deficiências estruturais e
anatômicas do esmalte e a utilização de fluoreto13. O amplo uso de fluoretos recebe atenção
especial como agente indireto de incremento da incidência de cárie oculta. O
esmalte dentário, por estar em contato direto com o meio bucal, ao contrário da
dentina, está mais exposto aos fluoretos, e, portanto, remineraliza-se com mais
facilidade14. O termo “oculta”, entretanto, é inadequado,
uma vez que a lesão cariosa é identificável do ponto de vista radiográfico.
Esta denominação talvez reflita a dependência do uso exclusivo do exame clínico
na detecção de lesões de cárie por parte dos dentistas.
Diante do difícil diagnóstico de lesões de
cárie oculta, e da possibilidade de progressão silenciosa bem como de
envolvimento pulpar, o objetivo deste trabalho foi apresentar e discutir as
características da cárie oculta, a partir do relato de um caso clínico.
RELATO
DO CASO CLÍNICO
Paciente A.G.,
gênero feminino, 19 anos, solicitou tratamento na clínica odontológica do C.P.O. São Leopoldo Mandic. A anamnese, feita com a paciente na primeira consulta, chamou
a atenção pelo uso de solução de fluoreto de sódio a 0,05% diariamente,
escovação com dentifrício fluoretado 4 vezes ao dia e
ingestão freqüente de alimentos ricos em sacarose. Não foi possível determinar
se na região onde a paciente residia a água de abastecimento público era fluoretada. O exame clínico demonstrou a ausência de
manchas brancas nas superfícies livres dos dentes (Figura 1). As únicas
manifestações da presença da cárie foram diagnosticadas nas superfícies oclusais
dos elementos 46, 47 (Figura 2) e 36.
Figura 1- Aspecto inicial,
evidenciando uma lesão de cárie restrita ao sulco mésio-distal
do elemento 46 (vista oclusal).
Figura 2- Aspecto inicial, em
maior aproximação.
No dente 46 havia uma lesão de cárie
restrita ao sulco mésio-distal, sem cavitação. As
margens da lesão não se apresentavam esbranquiçadas, sugerindo o diagnóstico de
lesão de cárie paralisada15.
O exame radiográfico interproximal
mostrou evidência de diminuição da radiopacidade da
dentina na região distal do dente (Figura. 3). Foi utilizado o Diagnodent (Kavo) como método
auxiliar de diagnóstico (Figura. 4). O aparelho foi aplicado nos dentes 46, 47
e 36, para efeito de comparação das lesões de cárie existentes. Foi também
aplicado no elemento 36 (Figura. 5), que se apresentava hígido clinica e
radiograficamente, para comparação das lesões de cárie com uma superfície
oclusal sadia. O exame acusou diferença entre a superfície oclusal dos elementos
46 e do 37, contribuindo para o diagnóstico de lesão de cárie no 46. O
resultado dos exames com os dentes 36 e 47 foram desprezados porque as lesões
de cárie destes dentes já haviam sido diagnosticadas clinicamente.
Figura 3- Exame radiográfico interproximal, utilizado como complemento do diagnóstico
para identificar as lesões cariosas.
Figura 4- Diagnodent
(Kavo), instrumento utilizado como método auxiliar de
diagnóstico.
Figura 5- Ponta do Diagnodent (Kavo), aplicado no
dente 36, após a aplicação nos dentes 46 e 47, com o objetivo de comparar as
lesões de cárie existentes (vista direta por mesial).
Com o diagnóstico estabelecido: cavitação
provocada por cárie nos elementos 36 e 47, e cárie oculta no elemento 46; o plano
de tratamento proposto foi: orientação de higiene bucal, controle da dieta cariogênica, orientação sobre o uso do flúor e tratamento
restaurador dos elementos 46, 36 e 47. Como o objetivo deste trabalho é relatar
um caso clínico de diagnóstico e tratamento de cárie oculta, a descrição a
seguir referir-se-á somente ao elemento dental nº. 46. O material restaurador
proposto foi resina composta, por tratar-se de uma lesão pequena, sem
envolvimento de cúspides.
Inicialmente executou-se a anestesia. No
período que precedeu o efeito total do anestésico, foi feita a tomada de cor do
dente. Foi utilizada a escala de cores para resina composta do próprio
fabricante (3M-ESPE). A cor escolhida foi a A1. A escolha de cor foi seguida
pelo isolamento absoluto do campo operatório.
Com o dente isolado, foi feita a abordagem
inicial da lesão cariosa do dente 46. Foi utilizada a broca carbide
nº 329 em alta-rotação (Figura 6). Ao remover o esmalte intacto da superfície
oclusal o operador experimentou a sensação de “cair no vazio”, que acontece
quando a pressão exercida na ponta de alta-rotação, suficiente para cortar o
esmalte dentário, torna-se excessiva para cortar tecidos cariados, que são
menos resistentes que os tecidos hígidos. Ao atingir o corpo da lesão de cárie
o operador iniciou a remoção da dentina cariada do elemento 46 com broca de aço
nº 2 em baixa-rotação (Figura 7).
Figura 6- Abordagem inicial da
lesão cariosa do dente 46 com broca carbide nº 329 em
alta-rotação (vista direta por mesial).
Figura 7- Remoção de dentina
cariada do elemento 46 com broca de aço nº 2 em baixa-rotação (vista direta por
mesio-vestibular).
O preparo cavitário
foi finalizado quando foi constatado que não havia mais dentina contaminada. No
fundo da cavidade foi mantida a camada de dentina esclerosada, que tem maior
resistência ao corte com brocas, e a importante função de proteger o complexo
dentina-polpa contra agressões externas16
(Figura 8).
Figura 8- Aspecto da cavidade
após o preparo (vista oclusal).
Foi executado o condicionamento ácido total
da cavidade, com ácido fosfórico a 37% (Atack-Tec, Dental-Tec) por 15 segundos. Após esta etapa, foi possível
observar o aspecto de perda de brilho do esmalte próximo das margens da
cavidade. Foi aplicado o sistema adesivo (Single Bond/3M
ESPE) em camadas, intercaladas por suaves jatos de ar (Figura 9). Após
verificar o aspecto brilhoso da dentina e do esmalte cobertos pelo adesivo,
procedeu-se a foto-ativação (Figura 10). A inserção da resina composta
(Z250/3M-ESPE) cor A1 foi executada em incrementos, tomando o cuidado de não
unir paredes circundantes opostas da cavidade (Figura 11). Cada incremento foi
foto-ativado por 40 segundos. Os incrementos foram inseridos da forma mais
anatômica possível, para minimizar a etapa de acabamento.
Figura 9- Aplicação do sistema
adesivo - Single Bond/3M - em camadas intercaladas
por suaves jatos de ar (vista direta por mesio-vestibular).
Figura 10 – Foto-ativação.
Figura
11 - Inserção da resina composta - Z250/3M/ESPE - no elemento 46 (vista direta
por mesial).
O acabamento da restauração foi executado
na mesma sessão (Figura 12). Foram utilizadas pontas diamantadas de granulação
fina nº. 3118 e 1190 (KG Sorensen/SS White). As
pontas diamantadas desgastaram a restauração sutilmente, para reproduzir a
anatomia da superfície oclusal que havia sido perdida no preparo cavitário. Após o acabamento inicial, o isolamento foi
removido e foi feita a análise da oclusão. Com o auxílio de fitas de demarcação
oclusal AccuFilm (Parkell),
a paciente foi manipulada para ocluir em relação cêntrica. Não foi constatada nenhuma interferência. Da
mesma forma, quando a paciente ocluiu em máxima intercuspidação habitual, também não foi encontrada nenhuma
interferência.
Figura 12- Acabamento da
restauração.
Para o polimento da restauração, que foi
executado logo após a verificação da oclusão, foram utilizadas pontas Enhance (Dentsply). Foram também
utilizadas pastas de polimento Poli I e II (Kota)
para obter o polimento final.
Com o polimento final, deu-se por concluído
o procedimento restaurador (Figura. 13).
Figura 13 - Aspecto final.
DISCUSSÃO
Esse caso clínico apresenta características
especiais que colaboram no diagnóstico de cárie oculta. A presença de lesões de
cárie dentária em quatro dentes está provavelmente relacionada com a frequente
ingestão de alimentos ricos em sacarose. Existe relação direta entre a dieta
rica em açúcares e o número de lesões de cárie17. O uso de fluoretos nas formas mais comuns
disponíveis: bochecho diário com solução de fluoreto, dentifrício e água de
abastecimento, são capazes de minimizar os efeitos da cárie. Como foi possível
constatar na anamnese, o uso de fluoretos na forma de
bochecho pela paciente, além das outras formas, possivelmente minimizou os
efeitos da doença cárie. A ingestão frequente de sacarose e a alta exposição
aos fluoretos são fatores etiológicos, quando associados, de cárie oculta14.
No exame radiográfico interproximal
foi possível observar a diminuição da radiopacidade
da dentina no local da lesão. O exame radiográfico está indicado como método
diagnóstico para cárie oculta12,18.
O exame radiográfico permite analisar a dentina adjacente ao esmalte não cavitado da cárie oculta, que não é tão facilmente
visualizada no exame clínico. O exame radiográfico apresenta, portanto,
vantagem sobre o exame clínico7,13.
Para o melhor diagnóstico da atividade de
cárie de qualquer lesão, cavitada ou não, a
associação de métodos diagnóstico é o mais indicado7,13. O equipamento de
fluorescência a laser, DiagnoDent (Kavo) pode ser usado como um exame complementar para
determinar a existência ou não deste tipo de lesão19.
Neste caso clínico, o exame de fluorescência a laser colaborou no diagnóstico
de cárie, pois demonstrou que o dente com a lesão de cárie oculta apresentava
maior desmineralização.
O tratamento de todos os tipos de lesão de
cárie deve incluir a orientação de higiene bucal e o controle da ingestão de
alimentos cariogênicos20. Desta forma, será possível diminuir a
incidência de novas lesões cariosas. A paciente foi orientada e, durante todas
as consultas para a execução do tratamento, demonstrou ter assimilado as
orientações e as incluiu na sua rotina.
As lesões de cárie já estabelecidas devem
ser indicadas para o tratamento restaurador21. A cárie oculta tem a mesma indicação, já que,
invariavelmente, apresenta a desmineralização da dentina de maneira
significativa. Por este motivo, no caso apresentado o tratamento indicado foi o
restaurador.
O material restaurador indicado foi resina
composta. A cavidade formada foi relativamente pequena, colaborando ainda mais
para a indicação deste material, cujo preparo cavitário é mais conservador do
que o preparo para amálgama22.
Apesar da superior longevidade clínica das restaurações de amálgama e das suas
melhoras nas características manipulativas, a resina composta é o material de
primeira opção para pequenas cavidades estritamente oclusais e é perfeitamente
indicada para pacientes que utilizam a fluorterapia22,23,24.
O tamanho reduzido da cavidade tem relação
direta com a precocidade no diagnóstico. Tal precocidade só é possível, para
este tipo de lesão de cárie, com o exame radiográfico21.
CONCLUSÃO
Devido à possibilidade de um diagnóstico
clínico falso negativo para cárie em dentes com a superfície oclusal hígida,
está indicado o exame radiográfico interproximal como rotina para todos os
pacientes.
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* Christopher Corbellini - Mestre em Dentística pela Faculdade de Odontologia e Centro de Pós-Graduação São Leopoldo Mandic, Campinas-SP; Professor de Dentística da Uniplac, Lages, SC.
** Adriana Silva de Carvalho - Professora de Materiais Dentários da Faculdade de Pindamonhangaba, Pindamonhangaba, SP.
*** Ynara Bosco de Oliveira Lima-Arsati - Professora de Bioquímica e Cariologia da Faculdade de Odontologia e Centro de Pós-Graduação São Leopoldo Mandic, Campinas, SP. Rua José Rocha Junqueira, 13. Bairro Ponte Preta. CEP: 13041-445. Campinas, SP. Telefone: 19-3211-3600 Fax: 19-3211-3635; e-mail: ynaralima@yahoo.com